Seu nome de batismo: Lucinda
Araújo Tavares. Ficou conhecida na cidade, como a Tia Luci
Tacacazeira.
Faleceu dia 15 de agosto de
2013, em Macapá, mas, mesmo com atraso, o blog "Porta-Retrato" presta
sua homenagem póstuma a esta mulher guerreira que muito bem representava a
fibra da mulher tucuju.
Reproduzimos abaixo a belíssima
Crônica, assinada pela jornalista Mariléia Maciel e publicada no blog "Repiquete no |Meio do
Mundo" da amiga Alcilene Cavalcante:
Tia
Luci nasceu quando a cidade se organizava ao redor da Igreja de São José e as
rodas de marabaixo eram a única diversão pros negros de Macapá. Cresceu rodando
a saia e com o sorriso carinhoso que ficaria até o final em seu rosto. Nunca
tirou da cabeça os sons de caixas e ladrões de marabaixo, a mesma cabeça em que
amarrou o lenço, e se profissionalizou no que seria seu ganha-pão. Junto com
dona Nenê e Tia Bebé, formou o trio das tacacazeiras mais prestigiadas da
cidade.
Casou
com outro pioneiro, seu Zequinha Eletricista, mas não sentiu as dores do parto.
Exerceu a maternidade criando as três sobrinhas deixadas pela irmã falecida,
como se tivessem saído de dentro dela. Amava seu pedaço de chão, e mesmo quando
o centro pedia mais espaços pras lojas, Tia Luci não se rendeu, nem vendeu a
casa, que continuou espremida entre prédios e empresas. O amor pela cidade não
deixou que saísse de seu reduto, os arredores do Largo dos Inocentes. Também
não perdia a missa na igreja do santo padroeiro, São José. Foi no centro, em
frente à praça Veiga Cabral, que fixou seu lugar de trabalho e nos fazia
salivar só de imaginar o gosto do seu tacacá, do mingau de banana e de tapioca.
-
“Pouca goma ou na medida, freguês?”
-
“Camarão da região ou do maranhão?”
Contava
espetacularmente as histórias, porque foi testemunha ocular das mudanças e
andar lento da cidade. A memória preservada permitia que comparasse o atual com
o passado, falava da Macapá antiga e de seus moradores, com quem conviveu,
falava também de como as coisas estavam mudando do dia pra noite. Nenhum
governador ou prefeito cumpriu um mandato sem ter abraçado, tomado bênção ou
dançado com Tia Luci. Conheceu todos, mas nunca se valeu do prestígio para ter
benefícios pessoais. Viu seus ilustres filhos crescerem da janela de sua casa,
ou nos passeios pela cidade, que nunca se furtou de fazer. Acompanhou seu
tempo.
Nem
mesmo quando a costa se curvou à escoliose, e a bengala se tornou acessório
obrigatório, deixou de estar presente em sua maior paixão, que eram as rodas de
marabaixo. Quando menos se esperava, ela aparecia nas festas do Divino Espírito
Santo e da Santíssima Trindade. Se vestia a rigor, saia florida, camisa branca,
flor no cabelo, toalha no ombro, perfumada e sorrindo. Dançava apoiada na
bengala, rodava com os jovens, e quando cansava, sentava em uma cadeira que
algum cavalheiro já havia preparado para esta dama especial. Cansava, mas
sempre juntava fôlego pra viver sua cidade e seu povo. Bebeu da mesma água de
Tia Biló, dona Gertrudes, Dica do Congó e mestre Pavão, que, entre os afazeres
da casa, família, trabalho e religião, encontraram tempo para valorizar nossa tradição,
ensinar aos mais moços e priorizaram não permitir, jamais, que nossa cultura
fosse perdida.
Tia
Luci aproveitava tanta coisa boa da vida, que não tinha tempo de pensar em
morte, e descobriu tarde demais os tumores que se alastravam. Viveu seus últimos
dias com a certeza de que a vida tem um fim aqui neste mundo, mas sua luta para
que a memória de seus antepassados não fosse desrespeitada, nos ensinou que as
pessoas só morrem quando são esquecidas e eles jamais sairão de nossas mentes,
porque estão enraizadas em nossa história. Tia Luci está em cada canto da
cidade, onde houver Marabaixo, onde houver tradição. A perseverança dela e de
outros negros pioneiros do Amapá valeu a pena, eles estarão nos livros e nas
memórias, e não haverá lei, nem governo, que façam com que suas conquistas e
histórias de vidas se percam no tempo. A cidadã Lucinda Araújo Tavares, a Tia
Luci, foi uma dessas guerreiras, que morreu com alma jovem e a sabedoria da
idade. Nos deixou como herança a lição de que é preciso lutar pelo que é nosso,
valorizar as tradições, e despertar nos jovens o amor pela cidade.
Na
despedida, pessoas de todas as idades, cores e raças, autoridades, populares e
anônimos, marabaixo, fogos, flores e cantos. Na recepção no infinito, com
certeza mais barulho feito por Sacaca, Mestre Julião, Raimundo Ladislau, Mestre
Pavão, Dona Vadoca, Dica do Congó e outros. “Eu vou embora já peguei
minha bandeira, já vou embora, já cumpri minha missão…”. (Mariléia Maciel)
Fotos: Reproduções em mosáico - Créditos: Neca
Machado e Alcilene Cavalcante
Fonte:
Texto reproduzido do Blog
Repiquete no Meio do Mundo, publicado sob o título Cidadã Luci: “Camarão da região
ou do Maranhão?”, pela jornalista Mariléia Maciel, em 18.ago.2013.
linda crônica! Só ressaltar que é Lucimar e não Lucinda. Mas obrigado pela homenagem.
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