A memória de Fernando Canto e o dia em que o hino oficial quase se perdeu.
Em 1982, o
Amapá vivia um daqueles instantes em que a história parece prender a respiração
antes de um salto. O Território Federal sonhava tornar-se Estado, e o espírito
coletivo era de construção e pertencimento.
Para
fortalecer esse movimento, o secretário de Planejamento, Antero Lopes,
instituiu uma comissão encarregada de coordenar a campanha e escolher os
símbolos do futuro Estado: bandeira, brasão e hino. À mesa, nomes que uniam
técnica, arte e sensibilidade: o jornalista Paulo Oliveira, o publicitário
Carlos Viana, o arquiteto Chikahito Fugishima e o poeta e artista multimídia
Fernando Canto.
As
inscrições para bandeira e brasão chegaram em grande número. Para o hino,
porém, o silêncio governou. Nenhuma proposta. O tempo apertava, e aquele vazio
ameaçava transformar um momento histórico em uma pausa desafinada.
Foi nessa
brecha que Fernando Canto apareceu, olhos brilhando como quem acabara de
encontrar um rio escondido na mata. Ele carregava consigo a Canção do Amapá,
com letra de Joaquim Gomes Diniz e música do maestro Oscar Santos. Naquele
instante, o Amapá ganhou a voz que buscava.
O maestro
que ensinou a ouvir
Oscar
Santos, lembrado com carinho por várias gerações, era mais que maestro. Era
jardineiro de talentos. Chegou ao Amapá ainda nos anos 1950, trazido pela
secretária de Educação Aracy Miranda de Mont’Alverne, e fez da então Escola
Industrial de Macapá uma casa de música pulsante.
Rigoroso no
ensino, exigia leitura de partitura e treino de ouvido. Criava disciplina e
liberdade, como quem constrói asas e raízes ao mesmo tempo. De seus
ensinamentos nasceram músicos como Joaquim França, Nonato Leal, Sebastião
Mont’Alverne, Aimorézinho e tantos outros que moldaram a alma sonora do Estado.
Compôs mais
de 560 peças. Algumas eram homenagens, como o Dobrado Epifânio Martins, feito
para o diretor do colégio, e o Dobrado Os Bonequinhos, inspirado nos uniformes
azuis dos alunos, que pareciam pequenas figuras de porcelana andando pelo
pátio.
O poeta que
semeou versos para o futuro
A letra do
hino era de Joaquim Gomes Diniz, amazonense de Coari, nascido em 1893. Diniz
chegou ao Amapá em 1929 e deixou marcas profundas como juiz, advogado e poeta.
Elegante e culto, era visto por muitos como um verdadeiro gentleman de chapéu,
cachimbo e alma literária. Morreu em 1949, mas sua poesia permaneceu, dormindo
como semente à espera do tempo certo para florescer. Esse tempo seria quarenta
anos depois.
A fita
cassete e o desafio final
Nas vésperas
da decisão, uma fita cassete surgiu como candidata ao hino, apoiada pela
primeira-dama do território, Mariinha Barcellos. A obra era frágil, e o refrão
exaltava um “comandante”, clara referência ao governador.
Era preciso
agir com delicadeza e estratégia. Em vez de apresentar a Canção do Amapá também
em fita, a equipe liderada por Fernando Canto produziu um documentário, editado
em Belém, já que Macapá ainda não tinha ilha de edição. O único videocassete da
cidade, emprestado do empresário Bira, da Sevel, foi o passaporte tecnológico
dessa missão.
No Palácio
do Governo, o contraste falou mais alto. Após ouvir a fita concorrente, o
governador Aníbal Barcellos assistiu ao vídeo com a Canção do Amapá. Ao final,
levantou-se e aplaudiu. Decisão tomada.
Em 23 de
abril de 1984, o Decreto nº 008 tornou oficial o Hino do Amapá, com letra de
Joaquim Gomes Diniz, melodia do maestro Oscar Santos e a dedicação sensível de
Fernando Canto, que acreditava que símbolos também são pontes entre o povo e
sua história.
Voz que virou legado
Hoje, a Canção do Amapá ecoa em cerimônias, escolas e praças. Cada vez que suas notas se espalham, parece que uma janela se abre para aquele momento em que o Estado encontrou sua própria identidade sonora.
A crônica
original que inspirou esta postagem foi escrita como homenagem, um ano após a
partida de Fernando Canto. Poeta, jornalista, músico e guardião da memória
coletiva, ele deixou o silêncio apenas para se tornar melodia permanente.
Aqui, onde o
rio encontra o céu e a história encontra a canção, seu nome segue navegando.
Não só na lembrança, mas na própria alma do Amapá.
Fonte
original: texto publicado no Facebook por Walter Jr., Presidente do Instituto
Memorial Amapá, em 29/10/2025, em homenagem à Fernando Canto, falecido em 29 de
outubro de 2024.

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