sexta-feira, 5 de maio de 2017

Foto Memória da Navegação Marítima do Amapá: MESTRE DONGA: UM MARUJO PIONEIRO (1914-2015)

(*) Por Fernando Rodrigues
“Orlando dos Santos foi um marujo pioneiro do AMAPÁ. Filho de Emiliano dos Santos e de Rosa Ferreira da Conceição nasceu na fazenda Santa Catarina, região de Chaves, arquipélago de Marajó, onde seus pais trabalhavam, em seis de dezembro de 1914. Marajoara típico, mistura de sangue indígena (aruã ou nheengaibo) com o de branco. Ainda adolescente começou a conhecer as terras da antiga capitania do Cabo do Norte em fins da década de 1920 ao viajar com parentes em embarcações à vela para Macapá, Mazagão e arquipélago de Bailique a fim de negociar e transportar passageiros, vindo a se tornar experimentado navegador do estuário amazônico.
Donga, como era conhecido Orlando dos Santos desde criancinha, também labutou na pecuária e na lavoura, período que estudou e aprendeu o suficiente para não ser enganado e almejar uma vida melhor, conforme ele mesmo. Sempre quis ser marinheiro e aos vinte e um anos de idade decidiu que seria um profissional da navegação marítima e, com as bênçãos dos pais, seguiu para Belém e passou a trabalhar como piloto em embarcações que singravam pelo arquipélago de Marajó transportando gado, mercadorias e passageiros.
DONGA NA 2ª GUERRA MUNDIAL
Com a entrada do Brasil na Segunda Grande Guerra, Orlando dos Santos engajou-se no “esforço de guerra” supervisionado pela Marinha Brasileira que tratou da participação de civis com habilidade na arte de navegar em missões de alto risco. Passou labutar como marinheiro em barcos a propulsão mista (à vela e a motor) que transportavam mercadorias, materiais e apetrechos bélicos da base aérea que os norte-americanos possuíam em Natal, Rio Grande do Norte, e da brasileira de Val-de-Caens, em Belém, para a base aérea instalada no município de Amapá e outras três em territórios das Guianas.
Ao contrário dos “soldados da borracha” que foi uma mobilização pública de nordestinos com destino à Amazônia para a extração do látex, o recrutamento e a missão dos marujos foi envolto de sigilo. Temiam os militares que com informações de espiões que agiam na região a serviço da Alemanha, as embarcações, embora navegassem próximo da costa, fossem interceptadas por submarinos nazistas. Certa vez, próximo de Paramaribo, a embarcação em que Donga viajava foi abordada por um submarino norte-americano, que se aproximou sem que percebessem. Depois de identificados e vistoriados foram liberados a prosseguir com o encargo.
Numa das viagens, o barco em que Orlando dos Santos costumeiramente fazia parte da equipagem, vindo do Nordeste brasileiro, carregada de munição, ao ancorar no arquipélago de Marajó para reabastecer-se e prosseguir a viagem, explodiu matando toda a tripulação. Escapou da tragédia. No dia anterior fora transferido para outra embarcação que rumara para Belém. A fatalidade foi mantida em absoluto segredo. Em meio da marujada chegou a ser especulado ter sido causado por torpedo disparado de submarino alemão que adentrara a baía de Marajó, burlando a vigilância naval brasileira.
DONGA “ANCORA” EM MACAPÁ
Com o fim da guerra, Donga continuou como embarcadiço navegando pelo Baixo e Médio Amazonas. Encontrava-se em descanso na fazenda Santa Catarina, em Marajó, em meados de 1947, quando um inesperado episódio iria alterar em muito sua vida profissional e familiar. Pousava numa campina próxima de onde se encontrava um teco-teco com quatro pessoas. A aeronave partira de Belém e seguia para Macapá. O problema não causaria um acidente, mas o piloto tomou a precaução devido à importância de um dos passageiros que transportava. Tratava-se do capitão Janary Nunes, o governador do recém criado Território Federal do Amapá.
O teco-teco ao pousar chegou até um terreno semi-alagado, onde ficou atolado sem sofrer danos. Donga participou com vaqueiros da fazenda do esforço de remover a aeronave para terra firme. Janary Nunes que participou desse trabalho, pouco antes de prosseguir viagem, sem rodeios perguntou-lhe qual sua profissão e ao ser informado que era marítimo, o convidou a trabalhar no governo territorial nessa profissão. Donga aceitou o convite e o governador escreveu um bilhete para entregar ao representante do Território em Belém que providenciaria sua ida para Macapá.
Ainda em 1947, Orlando dos Santos passava a ser servidor do Território Federal do Amapá lotado no SERTTA Navegação. Em 1950 casou-se com a cearense Helena Rodrigues de Alencar, filha do mineiro Sebastião Pereira de Alencar que havia imigrado para Macapá em 1943, vindo com a família da região do rio Jari, desafiando a arrogância e a prepotência do latifundiário José Júlio de Andrade e Silva que dominava aquela área e subjugava seus habitantes. O “seu” Alencar era um negro alto e forte que sabia ler e escrever e foi integrado no serviço público territorial como chefe do serviço de desembarque de cargas no trapiche Eliezer Levy, onde ancorava a frota governamental.
DONGA E A ALVARENGA UAÇÁ
Até a década de 1950, Donga navegou em todas as embarcações do governo, chegando ao posto informal de mestre de convés. 
Na década de 1960, devido a grande necessidade de bens de consumo e outros no Território e pouco interesse da iniciativa privada em fazer com regularidade transporte de veículos automotores e mercadorias em geral, foi integrada à frota territorial a Alvarenga Uaçá, com grande capacidade de carregamento, para ser rebocada pelo potente iate São Raimundo. Ao mestre Donga foi atribuída a responsabilidade de fiscalizar o embarque da carga despachada em Belém e garantir a segurança da mesma até o desembarque em Macapá.
Desempenhou tão bem a atribuição, que comandou a embarcação até a mesma se tornar inservível. 
No comando da Uaçá, mestre Donga fez para mais de duas centenas de viagens na rota Macapá-Belém-Macapá. Sempre havia mais carga do que a capacidade da embarcação e, também, dependia dele a prioridade do que embarcar e quando, suscitando incompreensões de donos das mercadorias preteridas por mais de uma viagem, com alguns reclamando a seus superiores hierárquicos que não levavam a sério as queixas, porquanto não duvidavam de seu profissionalismo e honestidade. Não guardava mágoa de ninguém; não se estressava. Logo, descontentes por conta do seu desempenho profissional, reconheciam que foram injustos e o procuravam para desculpar-se.
Para Donga todas as viagens foram importantes. Por muitos anos delas dependeu o funcionamento dos serviços públicos e o abastecimento do comércio local. Entretanto, destacava uma delas pelo que significou para a maioria dos habitantes de Macapá. Foi a realizada ao município paraense de São Miguel do Guamá para apanhar uma carga de farinha de mandioca que abarrotou os porões da Uaçá. Na época vivia-se nos primórdios da Ditadura Militar e grave crise de abastecimento de alimentos básicos e o produto foi para ser comerciado a servidores públicos, para desconto em folha de pagamento. A venda, de forma racionada, foi feita pela Superintendência de Abastecimento do Território Federal do Amapá (SATFA), que funcionava ao lado do antigo Fórum de Macapá, onde está sendo construída uma praça.
O OCASO DO NAVEGADOR
Ao ser extinto o SERTTA Navegação, os marítimos que se encontravam na ativa, entre eles o mestre Donga, continuaram a navegar lotado na Superintendência de Navegação do Amapá (SENAVA), criada pelo governador Anníbal Barcellos para transportar passageiros e cargas entre Macapá-Belém-Macapá. Aposentou-se do serviço público em 12 de fevereiro de 1982, aos sessenta e oito anos de idade. Logo, entretanto, voltou à ativa. O comandante Barcellos decidira valorizar a experiência e mandava contratar os marítimos aposentados que quisessem voltar a navegar. Trabalhou na instituição até a mesma ser desativada. Ao findar esse serviço que o governo prestava ao público, Donga passou a trabalhar na iniciativa privada até aos setenta e cinco anos de idade.
Definitivamente “desembarcado”, como dizem os marujos saudosos dos tempos de outrora, o mestre Donga tornou-se assíduo frequentador da sede dos aposentados para rever antigos amigos, recreação e tratar de seus direitos. Até tentou a averbação como tempo de serviço do “esforço de guerra”, mas a empresa para qual navegou desapareceu com fim da Segunda Guerra Mundial. Viveu intensamente até aos noventa e nove anos de idade quando um acidente doméstico o colocou em cadeira de rodas. Gostava da presença dos filhos, netos e bisnetos. Seu aniversário sempre era comemorado. Os seus cem anos de idade foi uma linda festa. Foi sua despedida da família e deste mundo.
Mestre Donga faleceu em Macapá onde residia há sessenta e oito anos, cinquenta e cinco dias após a morte súbita da dona Helena Rodrigues, sua esposa, com a qual era casado há sessenta e quatro anos. Dessa duradoura e amorosa união nasceram os filhos: Fernando Rodrigues (professor-historiador), José Rodrigues (falecido há 40 anos), Raimundo Rodrigues (economista-advogado), Francisco Rodrigues (professor-sociólogo), Paulo Rodrigues (administrador-auditor), Luís Carlos Alencar (tenente PM), Ana Maria Alencar e Ernandes Alencar (engenheiro civil). A cunhada Francisca Pereira de Alencar, a tia “Tita”, auxiliar de enfermagem aposentada, atualmente com oitenta e seis anos, lúcida e forte, ajudou a criar essa turma. O casal há tempo havia aceitado Jesus Cristo como o único e suficiente salvador e, nessa esperança, partiu para a eternidade.
Seu Orlando dos Santos faleceu, dia 26 de julho de 2015, aos cem anos, sete meses e vinte dias de idade. Era o remanescente dos mais de cinquenta servidores públicos da década de 1940 lotados nos serviços de transportes fluviais e marítimos do governo territorial.” 
Fonte: Facebook
(*)Texto do professor, historiador e escritor Fernando Rodrigues, publicado originalmente em sua página no Facebook, devidamente adaptado e atualizado, especialmente para reprodução no blog Porta-Retrato.
O biografado era pai do autor.

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