TELA DE OLIVAR CUNHA |
O poeta e sociólogo amapaense Fernando Canto, incluiu em sua
tese de doutorado sobre a Fortaleza de São José de Macapá, o poema O ROUBO DO
FORTE VELHO, de autoria do músico e poeta Obdias Araújo, “um velho militante da literatura amapaense, irmão de outros bons
poetas”.
Tu sabias
que a Fortaleza
foi toda construída
no Curiaú?
Diz que o Sacaca
o Paulino e o Julião
Ramos
vieram em cima da
Fortaleza
varejando até chegar na
beira do Igarapé Bacaba
onde amarraram a
bichona na Pedra do Guindaste
e foram tomar uma lá
no boteco do sêo Neco.
Diz que o o Alcy
escreveu uma crônica
E o Pedro Afonso da
Silveira Júnior leu
Oito horas da noite
no Grande Jornal Falado
E-2.
Diz que, né?
Diz que o mestre
Zacarias
vinha em cima do farol
tocando um flautim
feito
com as aparas da porta
de ébano...
E que Dona Odália vinha
fazendo
flores de raiz de
Aturiá
sentada no maior de
todos os canhões
brincando com a
Iranilde
que acabara de nascer.
Diz que o Amazonas
Tapajós vinha
cantando ladrões de
Marabaixo
-ele, o Edvar Mota e o
Psiu.
E o João Lázaro
transmitia tudo para a Difusora.
Diz que até o R. Peixe
pintou um mural
-aquele que ficou no
pátio da casa do Isnard
lá no Humilde Bairro de
Santa Inês
de onde foi roubado
pelo Galego e trocado
por duas garrafas de
Canta Galo
e uma de Flip Guaraná,
lá na Casa Santa Brígida...
Hoje Macapá amanheceu
bem
mais triste que de
costume.
Roubaram a Fortaleza!
Levaram o velho forte!
De madrugada
Dois ou três bêbados
remanescentes
viram passar aquela
enorme coisa boiando
rumo Norte, parecida
uma usina
de pelotização.
Andam comentando lá
pelo Banco da Amizade
que foi o Pitoca
a Souza
o Quipilino
o Pombo
o Zee e o Amaparino...
E que o Olivar
do Criôlo Branco
e o Cirão
estão metidos nessa
história.
Eu, hem!
O ROUBO DO FORTE VELHO
Fernando diz que “todas
as pessoas citadas no texto, bem como os lugares, existiram ou existem ainda.
São elas: Sacaca, conhecedor de ervas, curandeiro; Paulino, organizador de festas
de Marabaixo; Julião Ramos, líder, negro do Marabaixo do Laguinho e fundamental
no processo de gentrificação das famílias de negros que moravam na frente da
cidade na época da instalação do Território Federal; Seu Neco, dono de bar;
Alcy, poeta e jornalista; Pedro Afonso da Silveira Júnior, locutor de rádio; Mestre
Zacarias, flautista, pai do poeta; D. Odália, mãe do poeta; Iranilde, irmã do
poeta que nasceu nas dependências da FSJM quando seu pai ali morava; Amazonas
Tapajós, locutor de rádio e boêmio; Edvar Mota, locutor e publicitário; Psiu,
locutor e marcador de quadrilha junina; João Lázaro, disk jockey da Rádio
Difusora de Macapá; R. Peixe, artista plástico e sambista; Isnard, poeta e
advogado, que foi preso contumaz do regime militar; Galego, poeta e jornalista;
Pitoca e Souza, filhos do Sacaca, Quipilino e Pombo, irmãos boêmios, sendo o
primeiro servidor da Prefeitura e o segundo mecânico e sambista; Zee e
Amaparino, irmãos, o primeiro funcionário púbico federal no Amapá e o segundo
biblioteconomista; Olivar, torneiro mecânico, filho do Criôlo Branco,
massagista e benzedor e; Cirão, tratorista da Prefeitura.
Locais: Fortaleza,
FSJM; Curiaú, quilombo próximo de Macapá; Igarapé bacaba, local próximo ao
Curiaú; Pedra do Guindaste, antiga pedra e agora um pedestal de cimento que
sustenta a estátua de São José, padroeiro da cidade e se localiza na praia;
Grande Jornal Falado E-2, antigo programa de notícias de grande audiência
transmitido pela Rádio Difusora de Macapá; Aturiá, nome de praia e de uma árvore;
Marabaixo, manifestação cultural de origem afrodescendente. Bairro de Santa
Inês, antiga localidade da Vacaria, ao sul da FSJM; Canta Galo, marca de
cachaça; Flip Guaraná, antigo refrigerante local; Casa Santa Brígida, comércio;
rumo Norte, direção da praia do Igarapé das Mulheres; usina de pelotização, local
de transformação de pedras de manganês em bolinhas para exportação do minério
e; Banco da Amizade, tradicional local de encontro de amigos no bairro do Laguinho.
Este poema é
interessante porque realiza uma mistura de personagens emblemáticos da cidade
que participaram de um roubo fantástico, em que arrastaram a FSJM pelo litoral
até o local onde ela teria sido construída: o Curiaú, na imaginação do poeta.
Suas referências
memoriais apontam para uma realidade impossível, na narrativa de lugares e
personagens reais da cidade, principalmente os do bairro do Laguinho. O enredo
do poema parece se tratar de um resgate (que envolve vingança) de um objeto que
não pertencia à cidade de Macapá, mas sim aos remanescentes dos escravos, cujos
ancestrais participaram da construção da fortificação, pois a maioria deles são
afrodescendentes e por isso viram-se no direito de arrancar a fortificação e
leva-la até onde foi, de pleno direito, construída."
Foto: Reprodução / Arquivo pessoal |
Obdias é membro das
associações paraense e amapaense de escritores e da União Brasileira de
Trovadores. Vive em União estável com Telma Maria Salomão de Araújo.
Livros Publicados:
Apologia (1984) e Praça Pinga Poesia & Mágoa – Diário de um Vagabundo
Lírico (1987), VERSÍCULOS DE SALOMÃO (Dezembro de 2017).
Os poemas de Obdias,
curtos e de uma linguagem direta e contemporânea, por vezes irônica, conduzem o
leitor para o imaginário de um poeta integrado ao seu tempo, que fala de amor e
de saudade. Cultiva o humor, trazendo da vida quotidiana os elementos que constroem
o seu tecido poético com cores, sons e ritmos.
Obdias é um escritor
que gosta de viver intensamente, conta piadas de todos os gêneros, com nítida
preferência para os temas eróticos. Entretanto, com perspicácia, é capaz de
filtrar para a literatura tudo aquilo que pode ser aproveitado na poética. Não
é um escritor que produza intensamente, mas através dos três volumes já
publicados, podemos ter uma ideia de que ele está entre os melhores que o Amapá
já produziu.
(Texto: Paulo Tarso
Barros)
Fonte: Fernando Canto - Todas as informações fazem parte da tese do sociólogo Fernando Canto, sob o título LITERATURA DAS PEDRAS: A Fortaleza de São José de Macapá, como locus das identidades amapaenses, publicada pela Editora da Universidade Federal do Amapá - UNIFAP, 2017.
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