terça-feira, 11 de maio de 2021

MEMÓRIA DA CIDADE DE MACAPÁ: AFIRMAÇÃO DO PADRE JÚLIO MARIA LOMBAERD: COMUNIDADE DE MACAPÁ, QUASE PAGÃ

 Por Nilson Montoril (*)

Ao desembarcar em Macapá, no dia 27 de fevereiro de 1913, o sacerdote belga, Júlio Maria Lombaerd, sentiu o quanto os habitantes católicos da cidade estavam desassistidos espiritualmente. Sem ter um padre residente há bastante tempo, a Paróquia de São José já não cumpria integralmente o calendário litúrgico a que estava condicionada. Vez por outra, padres visitantes por aqui passavam, mas isso não satisfazia o povo. Padre Júlio comprovou, que a inexistência de um orientador religioso, priorizou as festas mais populares, como o batuque, rotulada por ele como "Festa das Coroas", compreendendo duas quadras, respectivamente, Divino Espírito Santo e Santíssima Trindade. Em suas anotações, ele assim comentou. "Este povo, quase tornado pagão, em consequência da falta de padres, e também pela ausência de toda instrução religiosa, estima e venera o padre. Aspiram pela sua vinda e demonstram, por palavras e gestos, a felicidade que sentem ao tê-lo no meio deles. Apesar do isolamento, em que vivem, não deixam passar nenhum ano, sem celebrar, com todas as pompas que lhes permite sua pobreza, certas festas que ainda restam, resquícios de uma piedade e de um amor de antigamente. As grandes festas, que celebram, são sobretudo as de São José, de Pentecostes, da Santíssima Trindade, de Páscoa e a de Natal. Porém, nenhuma festa da Santíssima Virgem. Marca característica. Enquanto o povo do Sul conservou e celebra quase todas as festas da Virgem Imaculada, o daqui não conservou nenhuma. A Mãe de Jesus está relegada a um plano secundário. E não hesito em dizer, que é a causa da completa decadência do povo amapaense. O mal está aí. O primeiro dos remédios deve ser tornar a colocar a Mãe de Deus sobre seu pedestal. Não será então o momento em que Jesus Cristo reinara aqui como Mestre? É a minha grande preocupação, desde quando aqui cheguei. Todos os meus esforços se concentram neste ponto. Os primeiros dias, em que dei catecismo, esforcei-me por fazer a criançada conhecer e amar a Santíssima Virgem. Os meninos me perguntaram, ingenuamente, que santa que é esta, se já tinha morrido, se era mais poderosa do que São Benedito ou São Raimundo. A explicação foi longa, mas produziu frutos. E hoje, os meninos nunca saem da igreja, sem antes, irem ajoelhar-se aos pés de Maria para pedir-Lhe a benção. Outro dia, encontrei, aos pés da Virgem, uma menina de catecismo, que já me havia despertado a atenção, por causa de sua magreza e fraqueza. Ela chorava, derramando lágrimas, de mãos postas e os olhos fixos na imagem da Santíssima Virgem. Aproximei-me sem fazer o menor barulho e, no meio de seus soluços, compreendi alguma coisa de sua conversa com a branca Madona. Mamãe, balbuciava ela. O Padre Júlio Maria disse que a senhora é nossa mãe. Veja, eu sou muito pobre, minha mãe já morreu. Ainda não comi nada hoje, estou com muita fome. Mamãe, a senhora podia me dar um pedaço de pão." Penalizado com a situação da menina, Padre Júlio levou-a até a Casa Paroquial e serviu-lhe pão, manteiga e café. O Diário Missionário do Padre Júlio é repleto de fatos pitorescos, ocorridos no decorrer de quase dez anos de sua permanência em Macapá.

Decidi comentar sobre dois pequenos ajudantes do Padre Júlio, que foram fotografados perto dele. O mais alto e forte, era bem desprendido e um pouco rebelde, razão pela qual, vez por outra, tinha que pagar penitências. Recebeu do sacerdote o apelido de Canossa, nome que lembra o castelo de Canossa, na Itália, onde o rei Henrique IV, do Sacro Império Romano, cumpriu uma penosa penitência para obter a anulação da excomunhão imposta pelo Papa Gregório VII, devido a atos de rebeldia. O castigo ocorreu em janeiro de 1077, compreendendo prostração de joelhos por três dias e três noites, ao relento, sob frio e neve. Ao deixar Macapá, em 1923, Padre Júlio levou consigo o Canossa. O outro garoto, à direita do sacerdote, era conhecido como "Cachorrinho de Padre", em virtude de sua obediência e permanente presença na Casa Paroquial. A fotografia desta postagem, data de 1914. No citado ano, o menino menor tinha nove anos de idade e seu prenome era José. Segundo o Padre Demerval Alves, que traduziu para o português os relatórios do Padre Júlio, escritos em francês, o tal José morava numa rua situada atrás da igreja de São José e, integrava uma família tradicional de Macapá. 
Conheci um ilustre macapaense, nascido no dia 8 de maio de 1905, chamado José Serra e Silva, que residia à Rua dos Inocentes, cujo trecho se estendia desde a Av. General Gurjão até a Av. Braz de Aguiar (Coriolano Jucá). Seus contemporâneos, familiares e amigos, em tempo da infância, o tratavam como "Cachorrinho de Padre". O próprio José Serra e Silva sempre falou sobre o fato. José Serra e Silva teve uma convivência enriquecedora com o Padre Júlio. Foi coroinha, moleque de recado, membro da Filarmônica São José e aluno da Escola fundada pelo vigário. Tornou-se um homem de bem. Foi prefeito de Macapá e Contador da Prefeitura Municipal de Macapá. 
Também foi excelente desportista e um dos fundadores do Cumaú Esporte Clube e da Sociedade Esportiva e Recreativa São José.

(*) Nilson Montoril é professor, historiador e presidente da Academia Amapaense de Letras

Fonte: Facebook

(Última atualização em 12/05/2021)

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