Por Michel Duarte Ferraz (*)
Em 1859, a então recém-criada Comarca de Macapá recebia seu primeiro Juiz de Direito: Severino Alves de Carvalho Junior. Vindo da Comarca de Vassouras, na província do Rio de Janeiro, o magistrado carregava não apenas a experiência como Promotor Público, mas também um forte elo com o governo imperial. Essa proximidade pode ter contribuído para sua nomeação, assinada no dia 3 de janeiro daquele ano.
A chegada ao Norte foi
paulatina.
ADMINISTRAÇÃO da Justiça.
Gazeta Oficial (PA), Ano II, N. 222, 05.10.1859.
REPARTIÇÃO de Polícia – Relação de pessoas despachadas em 04 de junho. A Época: Folha Politica, Comercial e Noticiosa (PA), Ano II, n. 125, 07.06.1859.
Apesar da curta passagem por Macapá, o juiz Severino deixou marcas significativas. Sua atuação foi elogiada pela imprensa da época como exemplo de legalidade, imparcialidade e probidade. E foi além da esfera jurídica: envolveu-se também em ações que hoje chamaríamos de humanitárias, como a organização de abrigos e o fornecimento de mantimentos para indígenas do rio Vila Nova, trabalho que contou com apoio logístico e financeiro do governo provincial.
CORRESPONDENCIA
Particular do Conservador. Brejo, 23 de fevereiro de 1860. O Conservador: Folha Política e Industrial
(MA) – Ano II – N. 59 – 10.04.1860
Na comitiva do magistrado seguia Raimundo, seu pajem, descrito por jornais da época como “trajando com decência, como é de costume entre pessoas distintas”. A presença de Raimundo causou incômodo. Ao circular pela vila cumprindo ordens de seu senhor, o jovem escravizado foi abordado por um integrante do chamado “grupinho mata-vigário”, facção local envolvida em disputas políticas. Tentaram extrair dele informações sobre conversas privadas da casa da família Carvalho. Ao se recusar, foi preso.
A arbitrariedade do ato
foi denunciada por um jornal local:
“Sem causa, sem respeito
à hospitalidade, o pajem foi agredido e preso pelo imbecil subdelegado
Torquatinho, instrumento dócil do grupinho.”
Para defender seu servo,
o juiz Severino impetrou habeas corpus. Raimundo foi solto no dia seguinte, mas
não sem antes passar pela humilhação de carregar na cabeça o barril de
imundícies da cadeia local. A justificativa oficial da prisão? “Andar o escravo
como forro, e fazendo immoralidades.”
Seria “andar como forro” usar sapatos e roupas limpas? E “fazer immoralidades” significaria manter a cabeça erguida e responder com firmeza? Essas perguntas ficaram sem resposta.
Esse episódio escancara não apenas as contradições de um sistema escravocrata em declínio, mas também como as tensões raciais e políticas se entrelaçavam de maneira brutal. O juiz, mesmo distante das intrigas locais, viu seu pajem virar alvo para atingir sua honra e a de sua família. E, como ainda se diz nos dias de hoje, “a corda sempre arrebenta do lado mais fraco”.
Além de uma crônica de costumes, essa memória do Amapá imperial é um retrato doloroso de como o poder da força — policial, política ou social — tantas vezes se impôs ao da justiça.
(*) Museólogo
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