domingo, 22 de junho de 2025

Memória da Justiça no Amapá – A História do Juiz Severino e Seu Leal Servo no Amapá Imperial

Por Michel Duarte Ferraz (*)

Em 1859, a então recém-criada Comarca de Macapá recebia seu primeiro Juiz de Direito: Severino Alves de Carvalho Junior. Vindo da Comarca de Vassouras, na província do Rio de Janeiro, o magistrado carregava não apenas a experiência como Promotor Público, mas também um forte elo com o governo imperial. Essa proximidade pode ter contribuído para sua nomeação, assinada no dia 3 de janeiro daquele ano.

A chegada ao Norte foi paulatina. 

ADMINISTRAÇÃO da Justiça. Gazeta Oficial (PA), Ano II, N. 222, 05.10.1859.

Desembarcou em Belém em 23 de maio e, poucos dias depois, seguiu viagem para Macapá, acompanhado por dois servos, Raimundo e Jacinto — ambos registrados pela Repartição de Polícia como escravizados de sua propriedade.

REPARTIÇÃO de Polícia – Relação de pessoas despachadas em 04 de junho. A Época: Folha Politica, Comercial e Noticiosa (PA), Ano II, n. 125, 07.06.1859.

Em 7 de junho, já exercia a função judicial na longínqua comarca amazônica.

Apesar da curta passagem por Macapá, o juiz Severino deixou marcas significativas. Sua atuação foi elogiada pela imprensa da época como exemplo de legalidade, imparcialidade e probidade. E foi além da esfera jurídica: envolveu-se também em ações que hoje chamaríamos de humanitárias, como a organização de abrigos e o fornecimento de mantimentos para indígenas do rio Vila Nova, trabalho que contou com apoio logístico e financeiro do governo provincial.

CORRESPONDENCIA Particular do Conservador. Brejo, 23 de fevereiro de 1860. O Conservador: Folha Política e Industrial (MA) – Ano II – N. 59 – 10.04.1860

Mas foi em 1860, durante uma visita à sua terra natal — a vila de Brejo, no Maranhão —, que se desenrolou um episódio revelador sobre os limites da justiça, os contornos da escravidão e a tensão racial que permeava o cotidiano do Império.
Imagem ilustrativa criada por IA

Na comitiva do magistrado seguia Raimundo, seu pajem, descrito por jornais da época como “trajando com decência, como é de costume entre pessoas distintas”. A presença de Raimundo causou incômodo. Ao circular pela vila cumprindo ordens de seu senhor, o jovem escravizado foi abordado por um integrante do chamado “grupinho mata-vigário”, facção local envolvida em disputas políticas. Tentaram extrair dele informações sobre conversas privadas da casa da família Carvalho. Ao se recusar, foi preso.

A arbitrariedade do ato foi denunciada por um jornal local:

“Sem causa, sem respeito à hospitalidade, o pajem foi agredido e preso pelo imbecil subdelegado Torquatinho, instrumento dócil do grupinho.”

                                                                                                                      Imagem ilustrativa criada por IA

Para defender seu servo, o juiz Severino impetrou habeas corpus. Raimundo foi solto no dia seguinte, mas não sem antes passar pela humilhação de carregar na cabeça o barril de imundícies da cadeia local. A justificativa oficial da prisão? “Andar o escravo como forro, e fazendo immoralidades.”

Seria “andar como forro” usar sapatos e roupas limpas? E “fazer immoralidades” significaria manter a cabeça erguida e responder com firmeza? Essas perguntas ficaram sem resposta.

Esse episódio escancara não apenas as contradições de um sistema escravocrata em declínio, mas também como as tensões raciais e políticas se entrelaçavam de maneira brutal. O juiz, mesmo distante das intrigas locais, viu seu pajem virar alvo para atingir sua honra e a de sua família. E, como ainda se diz nos dias de hoje, “a corda sempre arrebenta do lado mais fraco”.

Além de uma crônica de costumes, essa memória do Amapá imperial é um retrato doloroso de como o poder da força — policial, política ou social — tantas vezes se impôs ao da justiça.

 (*) Museólogo

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