quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

MEMÓRIA DA ECONOMIA DO AMAPÁ > GARIMPO DO RIO FLEXAL

RESGATE HISTÓRICO

Revista o Malho descreve um garimpo no Território Federal do Amapá em 1943

Imagem: Reprodução

Passadas mais de seis décadas, desde a descoberta do ouro no rio Flexal (1882), no sul do município de Amapá, a exploração do minério permaneceu ao longo do séc. XX, atraindo aventureiros de todas as partes do Brasil.

Essas descobertas foram atribuídas a garimpeiros (crioulos) oriundos da Guiana Francesa, que levaram seus conhecimentos em mineração de ouro para a região.

A criação do Território Federal do Amapá, em 1943, despertou o interesse do país em relação à vida nessa região mais setentrional da Amazônia, atraindo também jornalistas, contratados ou não, que se dedicam a conhecer e dar notícias da região.

É importante salientar que nem sempre os relatos que chegavam aos leitores estavam de acordo com a realidade. No entanto, apesar de serem sensacionalistas, esses relatos contêm dados interessantes, que ajudam a compreender a mentalidade e a sociedade da época.

Sem julgar se é ou não um retrato fiel da realidade, sem também entrar no mérito das consequências desastrosas advindas dos garimpos ilegais, resgatamos o interesse histórico e apresentamos uma reportagem sobre a extração de ouro no recém-criado Território Federal do Amapá.

Seu relato nos dá a oportunidade de imaginar e entrar na atmosfera. À margem do controle público, garimpeiros ávidos pelo minério se aventuravam nas matas, a explorar rios e igarapés, para recolher e disputar cada grama de ouro que pudesse ser extraída. Nesse contexto de privações e faltas, a vida nos garimpos era relativizada em detrimento da preciosidade e do valor econômico do ouro.

Imagem:Reprodução

A matéria, escrita por Mariz Filho, foi publicada na Revista O Malho (Rio de Janeiro) em setembro de 1943, e vale a pena ser compartilhada. A transcrição segue abaixo:

OURO, OURO DIFÍCIL:

“Nos garimpos do extremo Norte do Estado do Pará vamos encontrar aglomerados de homens, nacionais e estrangeiros crioulos, em vida comum na busca do ouro aluviônico da região, formando as ‘vilages’.

‘Világe’, povoado de ganância, que ganhou denominação francesa mesmo em território nacional.

Ali habitam cem ou duzentos homens. A maioria daquela gente egressa de presídios e quem não o é está para ser. O mais patife tem uma fisionomia serena de São João Batista; o melhor atirador tem somente um olho e ao mais valente falta-lhe um braço. Nuns não se vê a ponta do nariz, noutro uma orelha, noutro ainda, uns artelhos, mas essas pequenas omissões físicas não diminuem aquela união, mista de fraternidade e ódio, na busca, na gula do ouro.

Casas! – C a s a s ? – ‘Carbés’! – Uns arremedos: levanta um pau aqui, outro acolá, mais um esteirado de farripas de matamatá, à guisa de paredes, e cobertura de palmas, lonas ou latas de querosene abertas e fica pronta aquela arrumação de casa de chão batido e que se mantém em pé por milagre, aparentemente contra todos os princípios do equilíbrio. De roupa basta uma tanga ou calção, uma imitação qualquer, que facilita os movimentos no serviço de debreio e da bateia. Comida? – Bolo de tapioca, café e, para os mais afortunados, carne de caça, assada para durar três dias, e farinha, coisa parca, suposta alimentação. E bebida? – ‘Tafiá’, bebida de mentira, tomada com água.

Tudo ali é suposto. Tudo de mentira. Casas de mentira, roupas de mentira, alimento de mentira, gente mentirosa. E miséria... e desgraça, desgraça de verdade. Só isso de verdade...

Um descobre bom igarapé que dá muito: cinco gramas por dia. Divide em lotes, distribui por mais três, fica com o melhor. De repente o descobridor adoece e dá para inchar, inchar e ninguém sabe o que é.

Morre. É sepultado ali na margem mesmo, com uma forquilha no pescoço, outra no pé pra não boiar.

Morreu? – Não tem nada, amanhã já é outro que vai comer capim pela raiz...

Morte nas minas tem todo dia. Anda de braço com a morte a prostituição.

- Mulher nova na ‘világe’, gentes!...

- De onde vem? É de Macapá?

- É.

- Não faz mal! Deixa vir. É fome: garimpeiro tem ouro vamos até lá.

E as mulheres fazem câmbio com o ouro, mas este não aparece...

Morte ou mulher, sobrando ou faltando, não alteram o ritmo da ‘világe’. Seu povo não se detém naquilo que parece coisa comezinha (corriqueira). Um mata o outro. Não foi ninguém que matou... Chegou a vez do morto, foi Deus quem quis...

E a busca do ouro continua e todos são felizes com o papel que lhes cabe naquela tragédia das selvas. E o ouro vai saindo do ventre da terra, mas dinheiro não há... Ouro distante... Miríficos (admiráveis) sonhos de abastança...

Tudo ali é falso, muito falso... Tudo mentira... Nada, de concreto, ali é verdadeiro...

Verdade só a desgraça, a miséria, a desonra... só isso de verdade...

‘Világe!’ – Inferno, desolação, verde ‘paraíso perdido’ da orda (comunidade) anônima que sofre e é feliz...”

(O Malho – (RJ) Ano XLI - N. 44 - Set. 1943)

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SOBRE A REVISTA:

O Malho foi uma revista ilustrada que se destacava pela sátira política e pelo humor. Em 1902, surgiu no Rio de Janeiro e circulou por mais de cinquenta anos, com uma breve pausa em 1930, devido à Revolução de 1930. A revista O Malho, publicada semanalmente, começou a se tornar conhecida devido às charges e caricaturas famosas que tinham como objetivo ironizar a política do país. A revista foi criada sob a direção artística do artista pernambucano Crispim Do Amaral, sob a coordenação geral do jornalista e político Luís Bartolomeu de Souza e Silva, que também era proprietário do periódico A Tribuna (RJ)

A revista tinha esse nome, pois "malhava" instituições, políticos, pessoas e eventos que ocorriam no país. Os ataques geralmente se manifestavam na capa da publicação, em forma de charge. (Wikipédia)

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Fonte: Pauta sugerida por Michel Duarte Ferraz – curador do Museu de Justiça do Amapá (TJAP) e colaborador do blog Porta-Retrato-Macapá.

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