Há 70 anos nascia o grande poeta e boêmio Isnard Brandão Lima Filho que cantou em verso e prosa a cidade de Macapá.
(*)Por Paulo Tarso Barros
Isnard Lima em frente ao Bar do Abreu, na Av. Fab (em
Macapá - AP. 2001)
Quando eu vi o poeta Isnard Brandão Lima Filho (1941-2002)
pela primeira vez, em 1983, ele ainda morava onde atualmente é o bairro
Alvorada. Eu trabalhava na Estacon Engenharia e sempre comprava o lanche ou
tomava umas cervejas num barzinho próximo. Certa manhã ele apareceu. Desceu de
um automóvel e pediu uma cerveja. Estava sozinho, tinha os cabelos ainda pretos,
vestia-se com elegância. Magro e triste, irradiava, porém, certa superioridade,
um jeito meio irônico e observador. Nunca tinha falado com ele, embora já
houvesse lido alguns textos seus e ouvido falar daquele homem de andar
compassado, com fama de boêmio e místico. Observando a sua figura, logo me veio
à mente a imagem de uma ilustração do livro Dom Quixote, o Cavaleiro da Triste
Figura – anos depois eu escrevi um artigo sobre Isnard o comparando à personagem
de Cervantes. Ele começou a fumar, bebeu um pouco e logo puxou conversa comigo,
que naquela época já estava com 22 anos e, como qualquer candidato a escritor,
louco para publicar um livro. Falei timidamente dos meus escritos, mas o Isnard
foi taxativo: “Eu quero ver se são mesmo poemas. Agora virou moda: tem um monte
de gente imbecil aqui em Macapá escrevendo e falando muita besteira e dizendo
que é poesia. Poesia é coisa séria, não se aprende em universidade e não é pra
qualquer um. Não existe poesia ruim; se for ruim, nem é poesia” -
sentenciou.
Dois dias depois, fui até sua casa. Havia apenas um cachorro lhe
fazendo companhia. Encontrei-o sem camisa, de bermuda e sandália, lendo e
fumando. A casa estava cheia de livros, pequenos montes espalhados pela sala.
Parecia casa de homem que morava sozinho. Ele logo veio com as suas teorias: “Se
estivesse com medo, o cachorro perceberia e te atacaria”. Fiquei conversando com
ele, que folheava os meus poemas e, vez por outra, lia alguma coisa em voz alta.
Eu estava com medo do seu juízo devastador, cuja fama corria pela cidade. Mas
ele não emitiu nenhuma opinião e logo deixou de lado o meu material e foi me
mostrar alguns livros, falou sobre animais, a natureza, me mostrou o quintal.
Fiquei durante uns quarenta minutos na sua companhia e ele prometeu ler os meus
poemas. Depois falaria comigo. Eu me despedi, feliz por ter sido recebido por
ele, mas preocupado com a sua opinião que me seria comunicada
posteriormente.
Uma semana depois ele apareceu de novo no bar perto da
Estacon. Chegou caminhando e trouxe os meus poemas dentro de um envelope. Sorriu
para mim, pela primeira vez, e foi muito gentil. Eu fiquei nervoso com aquela
reação. Pensei comigo: “Essa amabilidade só pode significar uma coisa: ele não
gostou dos meus poemas, e só está sendo gentil para não me magoar muito”. Pediu
uma cerveja e eu, nervoso, disse que seria por minha conta (era sexta-feira).
Depois de tomar uns dois copos ele me disse: “És um poeta. Parabéns, e olha que
não sou de rasgar seda. Mas tu leva jeito pra coisa”. Eu entrei em pânico.
Isnard Lima, o implacável, aquele que falava o que sentia, que jamais foi
hipócrita, havia me chamado de poeta, embora eu mesmo, até hoje, nunca aceitei
esse título ou me fiz passar por tal “entidade” e nunca tive coragem de pedir
para ninguém escrever prefácio nos meus livros. Prefiro ser apenas escritor,
amigo das letras. Desde aquele dia passamos a manter contato, embora o trabalho
me tomasse bastante tempo, inclusive alguns finais de semana, mas sempre deixava
as poucas horas vagas e as madrugadas para as leituras e a escrita. Tinha certo
receio dos consagrados e participava timidamente da vida literária, que nos anos
80 ainda era muito incipiente, embora muitos pesos pesados (Alcy Araújo,
Cordeiro Gomes, Hélio Pennafort, Fernando Canto e o próprio Isnard) ainda
tivessem em atividade, mais através da imprensa do que lançando livros,
atividade, até hoje, nunca muito praticada entre nós.
Um outro episódio
engraçado ocorreu tempos depois. Eu estava almoçando quando recebi um
telefonema: era Obdias Araújo, me convocando para uma reunião urgente num bar
perto de onde é hoje o Fórum de Macapá. Ao me dirigir àquela reunião, encontro
Isnard Lima, Obdias e uns três “papudinhos” numa grande rodada de cervejas,
algumas sardinhas, cigarros e umas garrafas de pinga. Minha presença a tão
importante “conclave” era muito aguardada, pois eles esperavam que eu quitasse
boa parte da despesa. Sem alternativa, dei a minha contribuição e deixei os dois
poetas (ora, menestréis não precisam trabalhar e devem, obrigatoriamente, beber
muito!) e seus assessores na esbórnia e voltei ao meu trabalho de almoxarife e
comprador, que me manteve durante oito anos, quando colaborei um pouquinho na
construção do Teatro das Bacabeiras, Assembléia Legislativa, Marco Zero, Estádio
Zerão, Centro Cívico e muitas outras obras importantes.
No lançamento do meu
primeiro livro, Poemas de Aço, lá estavam Isnard Lima, Alcy Araújo, Obdias
Araújo e Fernando Canto. Isnard quis declamar um dos poemas e buscou entre os
presentes alguém com óculos, pois não queria fazer feio na casa de sua mãe:
estávamos na Escola de Música Walkíria Lima. Mais tarde, ele e Obdias se
desentenderam por causa de 50 litros de chopp – eu tive que levar o restante
para casa, pois ninguém deu conta de tanta bebida. Alcy não bebeu nada: já
chegou com o tanque cheio, caminhando apoiado em sua bengala.
Na Biblioteca
Pública Elcy Lacerda, uns dois anos antes de sua morte, autoridades e convidados
comemoravam o aniversário de Macapá. O Prefeito hasteava a bandeira, a banda de
música dos Bombeiros executava a Canção do Amapá. De repetente Isnard Lima
apareceu vestido de branco, com aquela sua pasta e o guarda-chuva, falando bem
alto e tossindo muito: “Não gosto de hinos! Eu detesto hinos! Eu não sou
inglês!” Saí discretamente e o segui até o interior da Biblioteca para
acalmá-lo. Ele estava bravo, meio embriagado e me disse: “Vou brigar com Alcinéa
Cavalcante, pois não gostei de uma desfeita que ela me fez. Imagine, não me
recebeu na casa dela, logo eu que fui grande amigo do pai dela, Alcy Araújo”.
Segurei no seu ombro e lhe falei: “Isnard, por que a Alcinéa, que além de uma
dama é poetisa? Logo ela, a pessoa que mais te elogia, que mais cita teus poemas
e que te adora? Ela tem verdadeira paixão pela tua obra e por ti. Outra coisa:
nunca vá até a casa dela antes das dez horas da manhã”. Ele ficou todo
desconcertado e nunca mais falou em brigar com Alcinéa. E quando a cerimônia já
estava ocorrendo no salão da Biblioteca, Isnard ainda arranjou uma discussão com
o artista plástico R. Peixe (de quem faria uma biografia), na hora do discurso
do Prefeito. Tive que mais uma vez apaziguá-lo.
Isnard costumava
buscar papel e pedir que alguém, com muita paciência, digitasse os seus textos
(pois ele sempre foi um perfeccionista e teimava em colocar letra maiúscula
depois dos dois pontos) na época em que eu era lotado na Assessoria de Juventude
do Governo do Estado. Havia uma moça que trabalhava conosco e nos servia o
cafezinho. Eu, por brincadeira, comecei a mentir ao Isnard de que ela gostava de
“coroas” que soubessem dançar bolero, tango e declamassem poemas. A partir de
então ele nos visitava diariamente e se dirigia direto para a copa, onde passava
horas conversando com a distinta, lia-lhe a mão com aquela lupa enorme que
carregava consigo. Parecia rejuvenescido. Ficava galante. Na hora de ir embora
nós tínhamos que dar um jeito de arrumar um veículo para levá-lo ou pagar sua
passagem. Esses fatos pitorescos servem para relembrar um grande poeta, que
sonhava em montar uma banca para vender revistas e produtos esotéricos; sonhava
em publicar 5 mil exemplares do seu livro, viajar pelo Brasil para ganhar um bom
dinheiro e comprar um carro seminovo; que me dizia: “Paulo Tarso, você tem que
arranjar umas dez mulheres bonitas, lindas, deslumbrantes, daquelas de parar o
trânsito para que elas visitem os empresários, políticos, juízes e autoridades e
consigam dinheiro para a Associação de Escritores. A gente bola um Livro de Ouro
e eu aposto que todo mundo vai assinar e contribuir. Com mulher bonita todo
homem se derrete, fica besta!”
Isnard sempre viveu como um poeta. Acho que
jamais seria um funcionário público exemplar, de dar expediente, assinar o
ponto: ele não nasceu para isso, me disse uma vez. Passou seus últimos anos
morando numa casinha humilde, de madeira, ao lado de sua companheira Ana Maria.
Embora fosse bacharel em Direito, nunca ganhou dinheiro com a profissão. Mas
dona Carmosina, sua primeira esposa e mãe de suas filhas, sempre lhe deu apoio.
Para ambas ele deixou poemas, belos poemas cheios de ternura e carinho.
Certa
vez, durante uma visita que lhe fiz, estava sentado, pensativo, no pátio e eu
lhe disse: “Essa era a vida que eu queria pedir a Deus: uma vida de poeta.” Ele,
triste, me respondeu: “Você nem imagina como eu estou me sentido, sozinho e
liso, muito liso: não tenho um tostão furado no bolso”. Aquilo me deixou
comovido e eu tive que inventar uma historinha para tentar elevar o seu ânimo e
pingar alguns trocados na sua mão. Mas quem, na vida, nunca se sentiu assim,
principalmente um espírito como o de Isnard Lima?
(*) Paulo Tarso Barros é
escritor e professor (http://paulo.tarso.blog.uol.com.br)